Nesse 31 de março recordamos, mais uma vez, o malfadado golpe civil-militar de 1964. E somos obrigados a falar do golpe de 2016.
Escrevo também na condição de coordenador da Comissão da Verdade em Minas Gerais, que tem, entre outros, o compromisso com a verdade, a memória e a justiça.
Nas democracias, a mudança do poder político só é legítima pela via eleitoral. Portanto, golpe é a mudança do poder político, de forma repentina, sem a deliberação ou o respaldo do povo.
Em 1964, o movimento golpista se deu com a violência das armas e o protagonismo foi dos militares. Em 2016, com violência simbólica, o protagonismo do parlamento no golpe só foi possível pelo evidente respaldo do judiciário. Em ambos os casos, a mídia, o setor financeiro e segmentos retrógrados da classe média foram os avalistas das rupturas democráticas.
Como se sabe, os golpes sempre produzem gravíssimas rupturas de ordens institucional, jurídica, econômica, social e até moral. Não é por acaso que percebemos a falta de compostura generalizada, inclusive de juízes de tribunais superiores.
E o golpe atual tem um agravante: diferentemente do golpe de 1964, quando os militares assumiram o controle e enquadram à força as demais instituições, o que vemos agora é uma disputa ensandecida entre líderes dos três poderes pelo controle do poder.
Como já registramos em outros textos, o que nos chama a atenção na ruptura democrática atual é o papel estratégico desempenhado por promotores e juízes na consolidação da ruptura democrática. Esse processo de centralidade do judiciário iniciou-se com a judicialização da política (no mensalão), derivando na politização da justiça (nas posturas e decisões de Sérgio Moro, Rodrigo Janot e Gilmar Mendes, na lavajato) e culmina com a partidarização da justiça (com a nomeação de Moraes para o STF). Fala-se, inclusive, que a presidente do Supremo, Gilmar Mendes ou Moro estariam sendo preparados para chefiar o executivo, num novo golpe dentro do golpe. Não me surpreendeu o fato de juízes e promotores começarem a se despontar em pesquisas de intenção de voto à presidência da república divulgadas nos últimos dias. Só falta o (detalhe do) respaldo popular para a consolidação da juristocracia tupiniquim no poder.
A centralidade do judiciário acontece simultaneamente à ampla campanha de criminalização da política, pela mídia, notadamente dos partidos e seus quadros. Ou seja, à medida que todos os políticos e partidos são lançados na fogueira, o poder judiciário vai aumentando sua musculatura.
Sintomático, também, o fato de, justamente quando o voto popular passou a eleger políticos e partidos de esquerda no nível central, os grupos de direita se articularam para surrupiar do povo o direito de escolher seus governantes e recolocaram as tradicionais elites, os velhacos, como dizia Ulisses Guimaraes, no centro da vida política nacional.
O fato é que as consequências das rupturas democráticas aparecem de variadas formas: disputa entre poderes, instabilidade das instituições, experimentos de golpes dentro do golpe, medidas antipopulares e antinacionais, etc.
No caso do golpe atual há que se registrar, também, algumas psicopatologias dos principais líderes golpistas nos três poderes: desejo incontido de poder, prestígio e bajulação e uma imensa fraqueza moral e ética, própria de personalidades pueris: pessoas que não têm limites; vivem num mundo paralelo; postam-se como cidadãos acima do bem e do mal e são obcecados pelo poder a qualquer custo.
Na atual fase os golpistas se articulam para recolocar o Brasil à sua condição de colônia do capitalismo rentista. Portanto, destruir os direitos sociais, econômicos e trabalhistas conquistados na Constituição Federal de 1988. Para tanto, há uma orquestração de ações nos campos político (executivo e legislativo) e jurídico-constitucional (Supremo).
É verdade que já aparecem fraturas entre os golpistas. Afinal, cobras num mesmo caixote acabam mordendo os rabos umas das outras. E vale a pena continuar torcendo para a sabotagem recíproca entre os membros dos grupos golpistas. Talvez, um racha seja a única forma de se esfacelar essa coalizão que destrói o país para a alegria do Tio Sam, o mentor do golpe, como ocorrera também em 1964.
Porém, enganam-se aqueles que pensam num futuro promissor com um país entregue à uma camarilha despudorada, antipopular e antinacional. O problema é maior é que não podemos contar com uma justiça isonômica e comprometida com a Constituição. Ademais, as instituições referenciais da sociedade também são objeto de desconfiança pública.
É preciso coragem: eleições diretas pelo voto popular são necessárias para o retorno à democracia. Mas, não são suficientes: somente com uma constituinte exclusiva para reformar os sistemas político, jurídico, econômico, de comunicação, entre outros, poderemos sair desse fosso colossal.
1964, que estava no retrovisor, voltou. É preciso reagir. Ou cairemos numa situação de barbárie.